Por que Crianças Matam - A História Real de Mary Bell - Gitta Sereny - Tomo Literário

Por que Crianças Matam - A História Real de Mary Bell - Gitta Sereny

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"...Temos alguma ideia, pergunta-se a sociólogos, psicólogos, advogados, juízes e jornalistas sérios de por que as crianças estão ficando tão violentas? Elas compreendem as consequências de suas ações? Elas sabem que a morte é irreversível? E em que medida sua exposição ao sexo e à violência na sociedade, em que medida as pessoas imediatamente próximas a elas, como pais ou responsáveis, são culpados?"

Por que crianças matam - A história real de Mary Bell, foi publicado no Brasil pela Editora Vestígio, com tradução de Erick Ramalho. Gitta Sereny é a autora do livro que tem 396 páginas.

Em um período de nove semanas, dois garotinhos, de 3 e 4 anos, foram encontrados mortos. Em 1968 Mary Bell e outra menina chamada Norma foram levadas a julgamento pelos assassinatos. Mary Bell foi declarada culpada e sua condenação foi de prisão perpétua. Na ocasião dos crimes Mary tinha apenas onze anos de idade. Em 1980, aos vinte e três anos, ela foi liberada do cárcere e aos quarenta anos ela relatou à autora da obra "o que fez e o que sentiu, o que fizeram a ela e por ela e em quem ela se transformou".

A autora traça a infância dessa mulher que, nos primeiros quatro anos de vida, foi rejeitada por sua mãe e entre os 4 e 8 anos, foi submetida a abusos sexuais por sua progenitora, que atuava como prostituta.

A menina, quando condenada, recebeu muitas adjetivações, tanto dos participantes do processo de julgamento, quanto da imprensa: "psicopata", "cruel", "aterrorizante", "maléfica", "aberração da natureza", "nascida do mal", "semente ruim". Pensar nesses adjetivos nos faz perceber que antes de uma análise depurada sobre os motivos que a levaram a cometer as mortes, ela já estava estigmatizada e já haviam definido quem ela era (independente de qualquer fator psicológico ou de construção cultural que ela havia recebido na sua formação nos primeiros anos de vida). De que ambiente aquela menina vinha? O que ela havia passado? Qual a motivação de seu crime?

A autora nos conta sobre a aproximação com Mary Bell e os contatos para viabilizar o início do livro que tratava de sua história. Já nessa parte da obra temos uma ideia sobre Mary, alguns fatores que contribuíram para a formação de sua personalidade e nuances de sua infância que ainda a "assombravam" (grifo meu).

A autora fala sobre a composição do tribunal que julgou a garota e repassa a história dos assassinatos, apresentando-nos reflexões de Mary Bell, que surgem dos relatos que vem de sua lembrança e o que constava nos autos do processo.  A garota, na ocasião do crime, passou por quatro meses de custódia e nove dias de julgamento.

"Eu não entendia o conceito de morte como (sendo) algo para sempre... Era irreal, incompreensível. Eu não tinha nada contra Martin ou ele contra mim. Eu não tinha intenção de matá-lo para sempre. Eu pensei que seria apenas presa. Eu o estrangulei, mas pensei em algo como, sabe, 'brincar de morto'."

Estruturalmente o livro se apresenta como uma apresentação do caso entremeado com o relato de Mary Bell, coletado pela autora. Nos relatos podemos compreender as impressões de Mary sobre os crimes, a participação da outra menina (Norma) - que foi inocentada, o julgamento, os momentos seguintes e as impressões que tinha sobre o caso como um todo, o que inclui as pessoas que participaram do processo de custódia, julgamento e prisão. Para ela, na infância, algo soava como uma fantasia brigando com a realidade. Os desafios que fazia com Norma, de certo modo, demonstram a sua não percepção da realidade total ou de que a morte fosse algo definitivo. Contudo, vale frisar ao leitor, que Mary não se furta da responsabilidade sobre os crimes, mas enseja por meio de seu relato, a reflexão do leitor sobre a percepção de uma criança sobre o ato criminal que cometeu.

Na parte dois do livro fala-se sobre o período em que ela ficou na Red Bank, que foi de fevereiro de 1969 a novembro de 1973. Mary revela que recebeu a informação de que ia para o local, mas não sabia onde era, "nem que lá só teria garotos". Portanto, notamos que mesmo o sistema prisional acabava por misturar num mesmo local meninos e meninas que haviam cometido crimes.


Após conhecermos detalhes do período em que passou por lá adentramos o período em que esteve numa outra prisão, que foi de novembro de 1973 até maio de 1980. Nessas passagens todas que nos são relatadas, além dos fatos apresentados por Bell, temos também as suas percepções sobre os acontecimentos. Ficamos sabendo sobre seu crescimento no sistema prisional, incluindo a sua descoberta sexual, as punições que levou, as relações que constituiu, o episódio de fuga e a preparação para sua soltura.

A adaptação de Mary Bell após sua libertação não deixa de ser tratada na obra. Fala-se, portanto, sobre  sua vida depois da punição, a necessidade que ela tinha de não ser identificada como aquela menina que havia matado dois garotos, a relação que teve com um homem, a gravidez, a ajuda de uma agente da condicional, a luta pela guarda da filha.

"Quando saiu da prisão em maio de 1980, segundo me contou, metade dela estava em estado de euforia com a ideia da liberdade e metade era incapaz de olhar adiante."

Na quinta parte da publicação temos um retorno à infância de Mary Bell para fechar o ciclo e demonstrar aquilo que afetava a vida da menina, mesmo antes da ocorrência dos crimes, que abarca a relação conflituosa com a mãe.

Acredito que o grande trabalho da autora deva ter residido no fato de tratar com uma mulher adulta e aparentemente consciente de seus atos sobre a ocorrência dos crimes chocantes que cometera na infância. A mulher que faz o depoimento outrora fora uma criminosa, passou por momentos conturbados e perturbadores na vida, foi uma adolescente com um histórico complicado, mas tornou-se uma adulta responsável (pelo que conseguimos absorver de seu relato). E o livro busca demonstrar essa construção de Mary Bell, sem contudo, justificar os seus crimes.

Do amor que ela tem por sua filha, parece nascer nela a percepção real e a compreensão de tudo que ela fez. Uma consciência que se apresenta conflitante com tudo aquilo que reverbera em seu interior, porque ela sabe e tem ciência (hoje) sobre a concretude da morte, sobre a impossibilidade de que eles voltem a viver.

O livro não tem por objetivo defender ou minimizar o assassinato dos dois garotos. Pauta-se na história de Mary Bell para levantar reflexões sobre as ações que devem ser tomadas com crianças que cometeram crimes, o que inclui o preparo de quem julga, a atenção que psicólogos, juízes, advogados e promotores devem ter e a compreensão da sociedade sobre o que leva uma criança a matar. Esse é o cerne da história que nos é apresentada e que nos faz pensar sobre o sistema judiciário, a punição que pode-se ou deve-se empregar para crianças que praticaram algum tipo de crime, sobre o sistema penitenciário e a assistência que deve ser dada à criança infratora.

A criança tem a percepção do mal que está cometendo? Todos os casos de crimes são iguais? Toda criança que pratica um crime age com a mesma motivação? A causa seria o comportamento de adultos que vivem próximo a essas crianças? Os pais seriam os responsáveis ou há outras pessoas que contribuiriam para a visão da criança? Vale a pena pensarmos sobre essas questões e sobre a maneira como as instituições e a sociedade trata as crianças que cometeram crimes.

Por que crianças matam é um livro daqueles em que ao concluirmos a leitura nos fazemos inúmeras questões. Ler de espírito aberto para compreender a ação humana mexe conosco e nos faz refletir sobre as crianças que cometem crime e todas as circunstâncias que as levam a tal ato. O grande aprendizado que fica com o livro é que as questões que se abrem não se esgotam e passamos a pensar (ou repensar) a responsabilidade da sociedade.

O livro não pode faltar na estante de qualquer aficionado por criminologia ou de quem goste de buscar analisar a mente humana em ações criminosas.

Sobre a autora:

Gitta Sereny | Foto: Reprodução

Gitta Sereny foi jornalista, biógrafa e historiadora. Investigou as origens e a natureza do mal em seus livros sobre criminosos de guerra nazistas (Into that Darkness: An Examination of Conscience e Albert Speerr: His Battle with Truth) e sobre crianças assassinas (The Case Of Mary Bell). Durante a anexação da Áustria pela Alemanha, Sereny viveu na França e depois nos Estados Unidos. Após a Segunda Guerra Mundial, retornou para a Europa e trabalhou com crianças que haviam sobrevivido a campos de concentração ou sido levadas de seus pais. A partir de 1958, viveu com o marido, Don Honeyman, em Londres, onde se tornou jornalista freelancer. Em 2003, foi condecorada com uma ordem de cavalaria britânica por seus serviços ao jornalismo. Morreu em 2012, em Cambridge, aos 91 anos.

Ficha Técnica:

Título: Por que crianças matam - a história real de Mary Bell
Escritora: Gitta Sereny
Editora: Vestígio
Tradução: Erick Ramalho
Edição: 1ª
Ano: 2019
ISBN: 978-85-54126-22-3
Número de Páginas: 396
Assunto: Homicídio juvenil






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