O Mal de Lázaro – Krishna Monteiro - Tomo Literário

O Mal de Lázaro – Krishna Monteiro

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"Chamei-te Lázaro, nomeei-te Lázaro,  batizei-te Lázaro. Chamei-te Lázaro, muito embora nunca tenha sabido teu nome. Naquela noite, Lázaro, a tarde assentava seu fecho, e do cume de um monte eu vi teu corpo na distância pela trilha."

Em O Mal de Lázaro, de Krishna Monteiro, publicado pela Editora Tordesilhas em 2018 (1ª edição, 175 páginas), a narração é feita por uma personagem feminina inominada para o leitor. É ela quem conta a história desse homem, que segue sua vida a caminho do matadouro no qual trabalha, em que os homens seguem o avançar dos dias como fazedores de morte. A narradora, assim que o vê naquela caminhada, do alto do cume, como descreve no trecho inicial do livro, o nomeia. Batiza-o e, para revelar ao leitor tudo o que precedera aquele momento, retorna a história até o primeiro dia em que ela o viu. Temos, na figura da voz que narra, um mistério a ser desvendado pelo leitor, na medida em que a história avança e os questionamentos surgem: quem é ela? Por que ela está próxima de Lázaro?

Lázaro, protagonista da trama, tem uma mancha em sua mão - a direita - aquela que usa para portar a faca no matadouro e tirar a vida de animais. A mancha não é meramente uma marca, é mais profunda, demonstra a existência de uma doença que de forma sorrateira o assola. Essa doença é a mesma que dá a ele uma presença (marca) diferente para aqueles que vivem na cidade. Todos olham para Lázaro desconcertados, querendo afastar-se do toque daquela mancha cinza que toma sua mão.

O personagem tranca-se em sua residência quando chega do trabalho e busca se afastar do som, isolá-lo. Fecha todas as frestas por onde qualquer ruído possa entrar. Quer manter-se distante de todo aquele barulho que ressoa na cidade  (e possivelmente em sua mente). Recolhido, coloca-se a pintar. O desenho é uma forma de colocar para o meio externo aqueles bichos que vê e abate ao longo do dia. Um meio de exorcizar o mal que o ronda.  Aqueles seres que ele conduziu à morte parecem ganhar vida por meio de seus desenhos. No que refere-se aos sons dos quais ele se preservava, agora estão mais fortes, mais vividos, como  que ressurgindo de tempos longínquos.

Num mercado algo espetacular acontece. Seu anseio por desenhar, realizado no chão do lugar, parece ter feito bem a um homem que ali passava mal e que tinha a morte como certa. Milagre? Ele, doente, passa a ser visto com um novo olhar. Uma imagem que o exalta como um homem puído, no entanto, capaz de salvar aqueles que precisam. A história, nesse sentido, aproxima-se das questões de fé em que tem referência bíblica no homem que carrega seu nome (Lázaro). A partir de um movimento inusitado, que aos olhos dos outros enseja milagre, ele é visto de modo diferente.

Chama-me a atenção como Krishna Monteiro consegue delinear bem a narradora e o protagonista a ponto de nos atermos fortemente nos dois personagens, mas não deixa também de conseguir imprimir as características dos lugares, das pessoas que contracenam e da forma pungente com que nos conduz pelo livro. Um belo texto que encanta e faz sentir o que cada passagem revela.

Na Bíblia, Lázaro adoece, Jesus parece nada fazer para salvá-lo, mas depois de quatro dias morto, Jesus o ressuscita. E também há a parábola sobre o rico e Lázaro, em que um Lázaro vive na miséria, com fome e cheio de feridas (tal qual o personagem do livro). Simbolicamente a parábola pode se referir como as decisões tomadas em vida afetam-nos na morte. Aqui encontra-se também uma luz ao que Lázaro (o do livro) representa: um homem que parece ressuscitar figurativamente a partir de uma doença.


Krishna Monteiro tem uma prosa poética de intensa sensibilidade e destreza. Lázaro é um personagem que carrega suas dores, que fecha-se em seu mundo e que tenta reconstrui-lo pelos desenhos. Externar as dores, medos, tormentos e até culpa, era sua busca própria por salvação.  São meios pelos quais o homem se reconstrói. Talvez uma alusão a arte, como inspiração que também surgem com o quadro A Ressurreição de Lázaro, de Vincent Van Gogh. Adoentado, frágil, segregado, o personagem sofre pelos outros e por si.

A narradora da história, em sua incógnita e mantendo-se inominada, vai criando ao leitor um jogo de interpretações. Note como ela lança pistas de quem seja. A construção de sua trajetória, do arco dramático que a acompanha, foi bem desenvolvida pelo autor. Fascinante o que se lê em O Mal de Lázaro. 

O nome que o protagonista recebe da mulher oculta parece acaso,  mas não o é. Tem simbolismo no que representa. Lázaro está na Bíblia, Lázaro está na arte,  Lázaro transcende um personagem indivíduo para representar o humano que é renegado em função de sua condição, mas que ainda assim, trôpego, segue sua jornada tentando apaziguar aquilo que mexe com o seu lado interno. O homem que é levado à condenação, por algo pelo qual não deveria ser condenado. Observe-se que condenação não quer aqui dizer acusado formal e restritamente no sentido jurídico, mas de sofrer condenação por ser julgado pelos outros. Quem conhece seu âmago é a narradora que nos fala dele com muita proximidade, garantida pelo fato de ser quem é. 

O livro de Krishna Monteiro agrada. A obra tem inspiração no poema de Carlos Drummond de Andrade “A Máquina do Mundo”, que faz parte do livro Claro Enigma, datado de 1951 e que é considerado por críticos e escritores como o melhor poema brasileiro de todos os tempos. No poema, a máquina do mundo abre-se para o poeta, demonstrando como é o funcionamento da vida, ou seja, dá uma explicação sobre ela. O poeta que, outrora, buscava o sentido da vida, quando a alcança, a deixa de lado, a trata com desdém. Recomendo que leia o referido poema como leitura complementar.

O Mal de Lázaro é um livro memorável, que fala de dores, sofrimento e redenção. Mostra-nos um homem que se afasta do mundo e para o qual a narradora abre “a máquina do mundo” para que ele veja o universo do qual se afasta e para que possa vivenciá-lo e compreendê-lo.

Krishna Monteiro | Foto: Reprodução

Sobre o autor

Krishna Monteiro nasceu em 1973, em Santo Antonio da Platina, no Paraná, e esteve rodeado de livros desde pequeno. Graduou-se em economia e fez mestrado em ciências políticas na Universidade Estadual de Campinas. Depois de uma breve passagem pelo jornalismo, em 2008 ingressou na carreira diplomática.

Entre os anos de 2010, e 2018, trabalhou como vice-chefe de missão da embaixada brasileira no Sudão, como cônsul adjunto do Brasil em Londres e na embaixada do Brasil na Índia e na Tanzânia, onde se encontra atualmente. Foi editor de textos literários da revista Juca-diplomacia e humanidades, publicada pelo Itamaraty, e ajudou a criar o blog Jovens Diplomatas.

Morando em terras estrangeiras, foi tomado por lembranças de outras paisagens e cenas de infância escondidas na memória, e começou a escrever contos, em parte inspirados em sua própria história, em parte inventados, que resultaram no livro O que não existe mais, publicado pela Tordesilhas em 2015. A coletânea será lançada na França (Editions Le Lampadaire) e na Romênia e foi finalista do Prêmio Jabuti 2016, na categoria Contos e Crônicas. Ainda em 2016, participou da Primavera Literária Brasileira, em Paris. O mal de Lázaro é seu primeiro romance.

Ficha Técnica

Título: O Mal de Lázaro
Escritor: Krishna Monteiro
Editora: Tordesilhas
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-8419-062-1
Número de Páginas: 175
Ano: 2018
Assunto: Ficção brasileira

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