De Portugal, a ficção minimalista de Luís Ene - Tomo Literário

De Portugal, a ficção minimalista de Luís Ene

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Há relações entre as literaturas produzidas no Brasil e em Portugal que ultrapassam a mera questão do idioma em comum. Tanto lá é lida a literatura que aqui se produz quanto cá se lê o que também lá é produzido: não nos faltam exemplos de autores cujos livros cruzaram o oceano para ganharem a estima dos leitores brasileiros e portugueses – dos mais clássicos, como Machado de Assis e Eça de Queiroz, aos contemporâneos, como Valter Hugo Mãe e Tatiana Salem Levy. Evidentemente há muita distância e preconceitos a serem vencidos. É preciso ampliar muito mais esse intercâmbio literário. Há muitos autores, tanto de lá quanto de cá, para serem descobertos e compartilhados entre os leitores.

Buscando apresentar mais um pouco da literatura portuguesa contemporânea, a Editora Penalux traz ao país a publicação de um autor ainda não conhecido pelos leitores brasileiros: o escritor Luís Nogueira.

Luís Ene (é assim que ele assina seus livros) chega ao Brasil por meio de seu livro Às vezes acontece-me esquecer quem sou, uma coletânea de minicontos mordazes e filosóficos, pela qual pretende o autor divertir e inquietar o leitor, colocando-o perante questões existenciais extremas. O livro evolui em torno de quatro temas essenciais nunca anunciados, mas que são retomados em cada uma das suas partes. A saber: 1) o ser, 2) o amor, 3) a escrita/leitura (e o livro) e 4) as transformações/metamorfoses. 


Dizer muitos em poucas palavras

O autor, que vem de uma trajetória literária construída sobre essa vertente minimalista, costuma afirmar: “Nada é simples quando se trata de palavras. Quando se trata de palavras até a palavra simples é complicada”.

No texto que completa uma das orelhas do livro, encontramos análise sobre sua produção literária: “Profundidade no estilo, profundidade na execução, profundidade no resultado. E tudo se aparentando afinal de fácil factura. É esta outra lição que nos dá a escrita de Luís: não há palavras pobres, não há palavras banais. Todas as palavras são enormes, pujantes de significação e sentido plúrimo. As acepções nascem, profundas, das palavras que parecem pertencer ao lado pobre da escrita. E com elas, bordadas no talento do autor, se constrói uma grande obra. Sobre tudo paira, como um deus, a concisão. Já o disse e volto a repetir: Luís Ene é um mestre da escrita minimalista (por Fernando Cabrita)”.

O livro, que reúne 129 minicontos, sai sob a chancela do Microlux (Editora Penalux), selo destinado ao gênero minimalista, que contempla as micronarrativas, como os exemplos abaixo que foram extraídos da obra:
           
“24 | Deu um passo à frente e, para seu espanto, logo se seguiram dois atrás. Tentou ainda muitas vezes, mas o resultado foi sempre o mesmo. Na verdade, estava cada vez mais longe de onde queria chegar. Foi então que decidiu virar costas ao problema, e seguir em frente sem hesitar.”

*

26 | Somos o que pensamos ser, assim pensou ele, e passou a partir daí a ser o que pensava. Mas ninguém deu por isso, e achavam que ele estava cada vez mais na mesma, o que não deixava de ser verdade, embora não fosse bem assim, pois se somos o que pensamos ser, também não podemos deixar de ser o que os outros pensam que somos.

*

Porque queria parecer mais magro, certo homem passou a andar na companhia de gordos. E porque queria parecer mais inteligente, passou a andar na companhia de idiotas. Verdade seja dita as coisas não lhe correram bem: os gordos achavam-no idiota, e os idiotas achavam-no gordo.

*

Um homem resolveu perguntar a si mesmo o que tinha, e as respostas foram deveras surpreendentes: não tinha ideias, não tinha vontade e não tinha amor por ninguém. Percebeu que tinha pouco, muito pouco, essa era a verdade, mas, apesar disso, descobriu que podia pensar muito, querer muito e amar muito. Acreditou então que quanto menos tivesse, mais poderia ser.

Foto: Divulgação
Sobre o autor

Luís Ene reside atualmente em Faro (Portugal), onde passou grande parte da sua infância e adolescência. Em 2002, foi vencedor da 1ª edição do concurso Novos Talentos com o romance A Justa Medida, publicado pela Porto Editora. No mesmo ano criou o blog Mil e Uma Pequenas Histórias, fazendo em simultâneo a sua entrada no mundo dos blogs e na arte da micronarrativa. Foi fundador e coeditor da Minguante, revista online de micronarrativas. Participou na criação de grupos de escritores no Algarve e em vários eventos de dinamização literária como o festival Poesia e Companhia, realizado em Faro em 2014. Tem lido os seus textos em público, acompanhado muitas vezes de músicos, sendo o seu projeto mais recente “A língua no ouvido”.

“Às vezes acontece-me esquecer quem sou” é sua primeira publicação no Brasil.

Ficha técnica

Título: Às vezes acontece-me esquecer quem sou
Autor: Luís Ene
Publicação: 2017
Páginas: 90
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