Nove passeios pelo feminino, em Novena para pecar em paz - Tomo Literário

Nove passeios pelo feminino, em Novena para pecar em paz

Compartilhe



Por Alexandra Vieira de Almeida

Em Novena para pecar em paz (Penalux, 2017), temos a reunião de nove excelentes contistas que nesses nove contos vão procurar expandir o espaço simbólico da mulher em nossa sociedade. Com o compartilhamento da violência no seio do universo feminino, o alargamento do espaço simbólico é o próprio processo inventivo da escrita dessas escritoras. O livro de contos em questão, organizado por Cinthia Kriemler que também nos brinda com seu conto no livro tem as seguintes autoras a mais: Beatriz Leal Craveiro, Lisa Alves, Lívia Milanez, Maria Amélia Elói, Mariana Carpanezzi, Patrícia Colmenero, Paulliny Gualberto Tort e Rosângela Vieira Rocha. Todas elas usam o processo da urdidura escritural como contravoz ao domínio masculino, sua violência e desautorização dessa voz feminina que não quer calar. O grito se constrói pelas tintas ácidas, ora belas, líricas, ora cruas e perversas. A perda, o abuso infantil, a homossexualidade, a transexualidade, a violência doméstica comparecem como as inúmeras vozes que temos diante de nossos olhos. A exposição, a exibição de tais gestos que não devem permanecer, na surdina, faz do livro um movimento de resistência frente à ordem estabelecida.

A grande escritora nigeriana, premiada e portadora dessa voz feminina, Chimamanda Nzogi Adichie, no livro Sejamos todos feministas, assim diz sobre essa expressão tão mal compreendida pela visão preconceituosa da sociedade: “Algumas pessoas me perguntaram: Por que usar a palavra feminista? Por que não dizer que você acredita nos direitos humanos, ou algo parecido? Porque seria desonesto. O feminismo faz, obviamente, parte dos direitos humanos de uma forma geral – mas escolher uma expressão vaga “direitos humanos” é negar a especificidade e particularidade do problema de gênero. Seria uma maneira de fingir que as mulheres não foram excluídas ao longo dos séculos. Seria negar que a questão de gênero tem como alvo as mulheres”. Nesses nove contos que formam uma novena para pecar em paz, a voz que se quer revelar não é a voz da necessidade, simplesmente, é um ato revolucionário, é o grito da libertação. O espaço da liberdade quer ultrapassar fronteiras misóginas e nos mostrar um mapa do simbólico, uma geografia de corpos libertos e não “dóceis”. Foucault fala sobre os “corpos dóceis”, em geral, vigiado pelo sistema panóptico. Aqui, o jugo masculino cria um panoptismo, encarcerando a liberdade feminina. Os corpos represados, aprisionados pela violência, pelo escárnio e preconceito, querem alçar o voo que só o discurso nos pode proporcionar. E é isso o que, belamente, essas escritoras fazem, alcançando a visão da montanha, o lugar pleno de nossa imaginação mais fecunda.

Há um livro maravilhoso, coordenado por Helena Parente Cunha, Caminhos da violência em busca da visão compartilhada: interpretação e comentários de textos de autoria feminina, que num dos ensaios, de Patrícia Maria dos Santos Santana, nos fala sobre a palavra “violência”: “A palavra violência deriva do Latim “violentia” e significa “impetuosidade”, “veemência.” Contudo, em sua origem, está intimamente relacionada como o termo “violação” (violare).” Portanto, tais contos, discursam sobre o ferir o espaço simbólico da outra. Sendo dominadas, domesticadas e silenciadas pelo poder do patriarcado a partir do binarismo homem x mulher, essas mulheres ganham complexidade e profundidade imagética, tornando as mulheres metáforas da diversidade do real, não a diferença que se quer “logocêntrica”, utilizando termo de Derrida para expressar o binarismo asfixiante que separa tudo em pares opostos; mas a diversidade que se quer irmanada, compartilhada, sem guerras, disputas, violências, mas que levem ao diálogo fecundo. É isso o que as nove contistas conseguem, brilhantemente, transpor. Atravessam a lógica estruturalista dos reducionismos fechados para nos levar para a via aberta do ficcional.

No conto que abre o livro, “Luz negra”, de Beatriz Leal Craveiro, temos as várias versões sobre uma mesma mulher. Inicialmente, a narradora é contaminada pela versão masculina dos fatos, pelo namorado da personagem Paula. Outra versão aparece, mais criativa, tendo o contraste de luz e sombras. Roberta, a narradora-personagem, inicialmente nos conduz à máxima baumaniana, de que todo amor é líquido, ao servir de testemunha entre os dois. Ela diz: “Não acredito no amor e sou livre”. Essas versões/invenções de Roberta só fazem nos revelar as potencialidades do feminino que têm o pluralismo de vozes em sua criação poética. Os olhares ora são invertidos, ora revertidos pelo dom do amor. Nesse conto temos a imagem do gaslighting que tanto aponta para o namorado de Paula em sua versão da loucura dela como da narradora-personagem Roberta que contaminada por ele, distorce e vicia sua relação com Paula. No final, temos a luminosidade de uma outra visão, mais límpida e clara, mais amorosa e afetiva, revelando o desejo escondido pela escuridão da luz negra.

Em “Destino”, de Cinthia Kriemler, a narradora nos conduz no início da narrativa ao mundo do faz-de-conta, às hipóteses de um universo possível como a própria construção do literário. Um universo possível para que o trágico não ocorra e a realidade seja superada. O mundo do “como fosse realidade”, que a literatura nos proporciona, segundo Wolfgang Iser, apresenta-se potencializado no início do conto de Cinthia: “O telefone poderia ter sido usado. Se houvesse um telefone. A porta poderia ter sido aberta. Se as chaves estivessem na fechadura.” Para, paradoxalmente, a mesma voz feminina, de forma irônica dizer da relação entre sua mãe e ela: “Era assim entre nós. Nenhuma mentira piedosa. Nenhum faz-de-conta”. A negligência da mãe de Júlia que provoca a morte da criança, sendo presa, mostra a outra voz do feminino, o lado sombrio desse mesmo feminino que também se percebe como falho. A premiada autora que fez o prefácio do livro, Natalia Borges Polesso, vencedora do 58º Prêmio Jabuti nas categorias Contos e Crônicas, com o livro Amora vai dizer dos diferentes modos de ser dessas mulheres que compõem o livro. Longe de mostrar uma visão maniqueísta do homem x mulher, as mulheres aqui em questão também apresentam seus defeitos, crimes, ódios e vinganças.

Nos contos riquíssimos por ora aqui estudados, encontramos as incógnitas no início das narrativas para serem desvendadas pela luz da escrita. O sol ora se adensa na sombra, ora esclarece o leitor, mas sempre por sugestões. É o que acontece no terceiro conto desta obra, “Estranha fruta”, de Lisa Alves, que vai falar sobre a perda, utilizando-se, intertextualmente, do poema “A arte de perder”, de Bishop, contrapondo-lhe com sua visão original sobre o luto a partir da violência de um pastor dito “ingênuo”, que na verdade mascara-se na sua face de inocência com os fiéis, mas é extremamente violento, abusando de todas as formas de uma das moças de um casal homoafetivo, levando a personagem à morte. Amor, vingança, perda são os ingredientes que perfazem este conto excepcional. Na narrativa, as frases causam tensão, são tensas, dando tragicidade ao conto. A perda na narrativa cria um tom de intensidade, sendo que ao longo do conto há cortes com frases de efeito, frases-chave no enredo: “Perder não é arte, Bishop! Perder é um resultado – o pior resultado”. Entre as duas havia uma combinação entre opostos como o próprio poético, a metáfora viva do humano, enquanto a combinação entre ingênuo e fera do pastor nos conduz às águas turvas do antipoético.

Nessas contistas aqui em questão, temos a maestria da arte do conto, de contar histórias com plenitude e dedicação. As escritoras são exímias na técnica do conto, revelando com apuro, complexidade e reflexão as doses poéticas do real. No “Prólogo” de Doze contos peregrinos, García Márquez disse: “...o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance”. É extrema a intensidade e força com que tais contistas começam seus contos, nos demonstrando logo no início a beleza e riqueza com os quais tais contos são urdidos na sua tessitura dinâmica. É como se todos os livros sobre a mulher fossem sintetizados nele, conduzindo o leitor na busca de novos textos como na imensidão babélica. No conto “A biblioteca de Babel”, do livro Ficções (1944), de Jorge Luis Borges, esse afirmou: “Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade”. Novena para pecar em paz é uma miniatura dessa biblioteca babélica, contendo mundos superpostos, mas desiguais. Um livro de fôlego que leva a novas possibilidades de entendimento do mundo.

No contoCaule de mogno”, de Lívia Milanez, temos os papéis sociais em que homens e mulheres devem ser esquadrinhados. A narradora-personagem faz o papel de doméstica de toda sua família, mostrando o papel do lar que sempre coube à mulher em anos de dominação masculina. É ela que faz toda a ceia de Natal, enquanto os homens se fartam na comida e na bebida, a narradora-personagem cria uma expectativa no leitor, pois tem um segredo a contar aos presentes. Não há previsibilidade na narrativa, que mais sugere que explica. Mas o homem se prontifica e diz: “Eu vou falar primeiro porque sou o homem da casa”. A narradora de início não narra claramente o que é. Pela reação dos outros a partir da rejeição vamos tateando o viés de encobrimento da narrativa. O leitor tem de descobrir pelas pistas que a narrativa vai dando. O texto é feito de descobertas e revelações a partir das sugestões e do inusitado.

Em “As duas irmãs”, de Maria Amélia Elói, temos a visão desse bem maior da mulher que é a maternidade. Octavio Paz nos mostrou em A dupla chama: amor e erotismo, quando fala sobre o motivo porque Sócrates escolheu uma mulher para falar sobre a doutrina do amor em O banquete: “Penso que se trata de uma reminiscência, precisamente no sentido que dá Platão a esta palavra: uma descida às origens, ao reino das mães, lugar de verdades primordiais”. Leonora, abandonada pelo marido, cuida com esforço e gana descomunal, de suas duas filhas para encontrar em outro homem um monstro de perversidade. Aqui aparece o tema do abuso infantil. E aquelas duas irmãs que eram tão unidas e brincavam de bonecas geram outras bonecas, as de verdade, frutos de um mesmo abuso. Há as frases-essências no conto que dão o tom do livro como um todo: “Esse negócio de vítima não é comigo. Minha única doença é ser mulher, mas não quero cura”. Essas frases marcadas pelo gênero, pelo estigma e marca de ser mulher nos revelam que as mulheres têm força. Apesar de serem estigmatizadas, elas querem continuar permanecendo mulheres, com sua força e garra, mesmo com tantas contradições. Apesar da desavença criada pelo violador, Jurandir, nas duas irmãs, elas se unem no final, pela beleza da maternidade. Temos, assim, no final deste conto, uma visão apaziguadora que tece com fios de esperança a dor e a marca, que não querem se apagar.

Em “Manual de mergulho”, de Mariana Carpanezzi, temos um exercício experimental, uma teorização sobre os espaços, a distância entre os seres. Numa gradação entre as partes que vai para o crescente e depois decrescente, temos a delimitação dos territórios. Os espaços da cama, do quarto, do oceano e da casa. Há uma circularidade com a imagem da neve da Islândia. Essa mulher que narra quer preencher seu território estável com o contraste do distante estrangeiro. Um manual de mergulho que aponta para a física celeste e o mar, unindo os dois reflexos num só. Aqui a voz feminina quer criar aquele espaço simbólico que falamos anteriormente, dando sentido ao seu discurso latente. A narradora faz um pacto ficcional com o leitor para que ele mergulhe no seu universo poético, assim como seu amado; Umberto Eco em Seis passeios pelos bosques da ficção assim nos apresenta sobre a ficção: “Quando entramos no bosque da ficção, temos de assinar um acordo ficcional com o autor e estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala, mas quando o lobo come a Chapeuzinho vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o leitor experimenta com a sua ressurreição)”. A narradora aqui em questão nos conduz a acreditar nos seus universos paralelos, ora o gelado e distante país, ora o aconchego quente de Brasília, que, por outro lado, apresenta sua extrema solidão. Aqui é a solidão feminina que comparece a nos dizer do convívio necessário.

No sétimo conto do livro, “Santa felicidade”, de Patrícia Colmenero, temos a narradora-personagem que tem de cuidar de novas crianças, seus pais idosos e o desejo que sua filha “certa” se case. Ela é que faz as compras no supermercado, que se transforma em um templo para ela. Tudo o que ela faz neste espaço é ritualizado. Unindo o sagrado e o profano, o cotidiano é sacralizado pela voz da narradora: Seus atos ritualizados revelam o aspecto sagrado do dia a dia: “Como um xamã, ela olha para os cristais da embalagem de Omo e faz os cálculos mágicos.” As mercadorias ao invés de serem tratadas como coisas, objetos, são imantadas, tornando-se símbolos de seus desejos. Mas, no fundo, seu desejo é de libertação, viajar, sair daquele núcleo familiar, do seu marido, pais e filhas. Poder gastar todo o seu dinheiro de aposentadoria em restaurantes, tirando aquele peso da vida. O papel da mulher é forte e marcado pela sociedade machista, que a vê como escrava do sistema. Ela diz: “O amor é algo automático”. Esse espaço da liberdade se conjuga com o espaço da independência da mulher que se encontra presa a um mundo de artifícios.

No conto “Mirna”, de Paulliny Gualberto Tort, não temos a alegria da maternidade, mas a consciência de sua intensa dor. Todas aquelas casas se repetiam do lado da sua casa. Todas as famílias eram iguais, na sua circularidade monótona, mas Mirna, a narradora-personagem e mãe, quer encontrar a diferença, algo especial que a diferencie dos demais, mas ela diz com relação ao marido e filha: “Mas não sinto alegria em vê-los assim tão belos”. A beleza dessa maternidade sofredora faz da mãe uma metáfora para as formigas devoradoras: “E cheiro esse casaco e amo a menina com uma dor que me corta em pedaços tão pequenos que me vejo transformada em milhares de formigas.” Ela quer escapar da previsibilidade, da repetição, mas quando volta para casa do supermercado leva o sorvete que o pai pede para ela comprar para a menina: “E antecipo a textura cremosa que em breve tocava minha língua e descerá pelo esôfago de um corpo que já não existe”.

Para finalizar, temos o nono conto, “O bolso do vestido azul”, de Rosângela Vieira Rocha, que também é feito de segredos e descobertas. A narradora vê como antinatural a mãe ter de enterrar a filha Ruth que sofreu um acidente de automóvel. As imagens dos objetos que a mãe encontra no apartamento da filha reforçam essa voz feminina que percorre todo o livro. As várias versões das bonecas russas, que Ruth tinha, mostram o valor do emponderamento feminino que para a mãe é símbolo de fertilidade. Ao escolher o vestido para o velório da filha, a mãe encontra no bolso do vestido azul uma caderneta, símbolo do que escondemos em nosso ser, mas que pelo destino pode ser revelado: “Na noite em que me levaram, eles me arrancaram da cama, aos gritos (Quando foi isso?1970?). Sim, a garota foi presa aos dezesseis anos. A mesma idade que tinha, quando engravidei de Ruth.” Num lindo processo narrativo, as anotações da filha se mesclam com os pensamentos da mãe, revelando o elo entre mãe e filha, presentificando um momento terrível da ditadura, com suas torturas, estupros e coibições. Algo que é trágico na vida daquela mãe se intensifica mais ainda na tragicidade daquele segredo desenvelopado, a força dramática da narrativa ganha seu tônus enigmático; sendo revelado para nós leitores momentos soterrados que vêm à tona. Mas é aquele vestido, símbolo da dor que vai cobrir a filha na hora da morte. A mãe quer cobrir o corpo da violência, cobrir com o segredo o seu manto de dor.

Portanto, temos nessas nove autoras admiráveis passeios pelas veredas do feminino, mostrando-nos seus matizes, seus lados luminosos ou sombrios. Ao mesmo tempo, temos a quebra do discurso patriarcal que estigmatiza a mulher na sua armadura de medo. Mas o grito é mais forte, a força poética dessas autoras fantásticas vai deixar rastros profundos em nossa literatura e sociedade, fazendo a ponte entre o real e o ficcional e cativando os leitores com suas narrativas complexas, sugestivas e desafiadoras para os seres que virão a construir uma sociedade mais justa e plena com toda a diversidade que compõe nosso cosmos social. Composta por autoras experientes e premiadas, essa Antologia de contos de mulheres de Brasília teve a orelha assinada pela vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2015 – categoria romance, Micheliny Verunschk. Termino com uma frase dessa escritora que disse sobre o livro Novena para pecar em paz: ”Esse conjunto de pequenas e densas histórias é um documento da barbárie à qual histórica e culturalmente o feminismo vem se contrapondo.”

“Novena para pecar em paz”, antologia de contos. Organizadora: Cinthia Kriemler, 102 págs., 2017.

Sobre a resenhista

Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui seu comentário.

Pages